quinta-feira, 8 de maio de 2008

Infidelidade: Uma Obsessão da Sociedade Americana

Pascal Bruckner*
do Le Monde
Quando o novo governador democrata de Nova York, David Patterson, sucedeu a Eliot Spitzer, o ex-intocável que se revelou culpado de ter freqüentado garotas de programa, qual foi a primeira iniciativa que ele tomou? Ele convocou os meios de comunicação e confessou ter traído a sua mulher em várias oportunidades com colegas de escritório. A sua mulher, por sua vez, reconheceu ter “pulado a cerca” algumas vezes e jurou que o seu marido e ela já tinham superado essas provas. Isso causou estupor no cidadão europeu que ainda não se esqueceu do espantoso escândalo Lewinsky: em vez de apresentar o seu programa político, eis um oficial que promove um ato de arrependimento, por temer que os seus tropeços conjugais sejam revelados publicamente um dia desses. Resumindo, a primeira potência mundial, que está no processo de perder a guerra no Iraque e no Afeganistão, que reabilitou a tortura e que elegeu para dirigi-la, duas vezes seguidas, um dos chefes de Estado mais incompetentes deste período, está concentrando as suas atenções em miseráveis histórias de relações sexuais!

Qual fato está acontecendo, capaz de fazer com que a imprensa inteira, dos jornais de sarjeta até o muito sério “The New York Times”, se apodere deste assunto privado e comente a respeito ao infinito?
Vale recordar aqui os vexames proporcionados pelo ex-governador democrata Eliot Spitzer: um cruzado na luta contra a corrupção financeira, um campeão no combate contra a prostituição, ele mesmo freqüentava uma morena estonteante de 22 anos, Ashley Youmans, também conhecida como Kristen, de quem ele pagava os serviços entre US$ 1.000 e US$ 5.000 (entre R$ 1.700 e R$ 8.500), obtidos, segundo dizem, dos seus fundos de campanha eleitoral.
Aqui, mais uma vez, tudo isso aparece como perfeitamente normal para um velho europeu acostumado com os impulsos repentinos inerentes à natureza humana: tal como o capitão Haddock, presidindo em avançado estado de embriaguez uma reunião contra o alcoolismo, os apóstolos do pudor, nos Estados Unidos, inimigos do vício, do feminismo e da liberdade dos costumes, acabam caindo invariavelmente nos braços de prostitutas, com as narinas entupidas de cocaína; e são sempre surpreendidos em flagrante.
Todo moralista acaba tropeçando nos próprios pés algum dia, para cair no abismo que ele denuncia: a própria Igreja católica, que preconiza a castidade e não hesita a expor os homossexuais à condenação pública, não está encobrindo, pelo mundo afora, os atos de milhares de padres pedófilos que estupram e abusam de crianças?
Aqui vai uma primeira lição da velha Europa: desconfiar a priori de todo discurso virtuoso. Eros se vinga dos seus censores e acena com um formidável gesto obsceno para o puritanismo ambiente. Além disso, o que pensar ainda dessas associações americanas de terapia familiar, que explicam que “as reações de uma esposa traída se parecem com os sintomas do stress pós-traumático das vítimas de eventos traumatizantes”, como os atentados de 11 de setembro de 2001?
O que dizer desses seminários para maridos infiéis que são reeducados da mesma maneira que dissidentes do ex-império soviético? Para um europeu, o fato de confundir um desregramento amoroso com uma catástrofe coletiva constitui uma comparação escandalosa.
Diante disso, só resta recomendar de maneira encarecida aos americanos para que eles tomem com o Velho Mundo lições de civilização: deste lado do Atlântico, conforme testemunham o cinema, a literatura, o teatro, todo mundo trai e é traído, e todos sobrevivem muito bem à inconstância do seu cônjuge.
A verdadeira fidelidade revela ser mil vezes mais exigente do que uma estrita abstinência física, e caso o amor for forte, ele superará esses episódios.
Melhor ainda: o adultério, entre os europeus, tornou-se praticamente um objeto de veneração, simbolizando o protesto da criatura oprimida contra a convenção matrimonial. Desde o defensor do socialismo utópico Charles Fourier (1772-1837), que estabeleceu, no início do século 19, uma “Hiérarchie du cocuage” (obra de Fourier que pode ser traduzido, grosso modo, como “Hierarquia da ‘corneação’”. No Brasil, ganhou o título de “Guia dos Cornudos”, editado pela Insular) hilariante que ridiculariza todos os “cornudos”, até autores como Labiche, Feydeau, Guitry, que fazem rir com as infelicidades dos cônjuges espezinhados, as infrações ao contrato de casamento constituem um sem número de ocasiões para se divertir.
Ainda mais modernos, Sartre e Simone de Beauvoir não haviam estabelecido uma distinção entre amores contingentes e amores necessários para autorizarem a si próprios aventuras com outros parceiros, os quais eles trocavam entre si quando a oportunidade se apresentava?
No plano dos costumes, a Europa é infinitamente mais sábia do que o Novo Mundo, com a sua horrorosa obsessão pela transparência. Até mesmo num casamento de amor, a monogamia estrita constitui um ideal desumano, e mais vale aprender a lidar com as fraquezas humanas do que tentar contê-las a todo custo, ao preço de dramas inúteis.
O filósofo, matemático e político britânico Bertrand Russell, em 1929, no seu ensaio sobre “O Casamento e a Moral”, preconizava uma solução à francesa: uma grande tolerância para com caprichos adúlteros, tanto por parte do homem quanto da mulher, contanto que eles não interfiram em nada na vida do casal e não atrapalhem a educação das crianças.
Resumindo, a quietude conjugal acomoda-se perfeitamente com pequenos acertos entre cônjuges, os quais são emblemáticos de uma sociedade refinada.Contudo, se o analisarmos mais detalhadamente, o episódio Spitzer-Kristen nos oferece outros ensinamentos.
O que está sendo sancionado em relação ao ex-governador de Nova York?
A hipocrisia de um homem que jurava solenemente acabar de uma vez por todas com o tráfico de seres humanos, ao passo que ele freqüentava The Emperor Club, uma rede de prostitutas de luxo dirigida por um proxeneta notório. Portanto, é um tartufo, um hipócrita de marca maior que é derrubado, mas é a garota de programa que acede a uma notoriedade surpreendente: lá está ela, de repente, galgando orgulhosamente os degraus que a levam até os píncaros da glória, assediada com ofertas de filmes, de fotos de charme, de publicidades para produtos de beleza, de lingerie fina. Duas músicas que ela grava e vende num site musical lhe rendem US$ 200.000 (cerca de R$ 340.000) em poucos dias.
Será puritana a sociedade que pune o pregador e recompensa a pecadora, fazendo dela uma estrela instantânea? A sociedade que aponta o vício no representante da ordem moral e a candura numa “pretty woman” de Nova Jersey?
É possível se perguntar se a obsessão pela infidelidade do outro lado do Atlântico não resulta do caráter artificial do contrato social americano, este pacto que foi inaugurado em 1787 entre homens de todas as condições, raças, origens, religiões. O casamento livremente consentido e complementado pelo divórcio possível torna-se então o espelho, o microcosmo deste juramento fundador da nação.
Quando vasculhamos as transgressões com tanta minúcia, é para melhor verificar a norma: ao se mostrar desleal no amor conjugal, o cônjuge infiel não estaria questionando esta aliança fundamental que une todos os americanos?
Se a pequena pátria que constitui a família vacila por conta dos caprichos dos cônjuges, o que será da grande pátria, em caso de perigo?
Lá onde a Europa, composta por nações antigas, ricas de tradições, dá mostras de certa desenvoltura, os Estados Unidos manifestam rigidez e intransigência: quando o mais fundamental de todos os laços, o do casal, é colocado em dificuldade, é o próprio futuro do país que pode estar comprometido. Uma nação recém criada, a América exorciza através das infrações conjugais dos seus dirigentes a sua própria fragilidade.
Os interesses que estão em jogo são apenas superficialmente de ordem moral: eles são antes políticos.